Se leram a minha análise de Super Mario Bros. Wonder, talvez aquela frase final da conclusão vos pareça em parte esotérica, e em parte demasiado específica para lá estar por acaso. Há uma boa razão para eu não duvidar da capacidade de um bom Mario 2D de conceber novos jogadores fervorosos: eu tornei-me numa das vítimas desse condicionamento cognitivo-comportamental após um encontro fortuito com New Super Mario Bros. (DS). Pouco tempo após o seu lançamento, houve uma febre deste renascimento 2D de Mario na minha escola. A cada intervalo, os gaiatos corriam todos para os corredores, libertavam temporariamente os seus bolsos daqueles chumaços formados por Nintendo DSs, e alapavam o traseiro no seu pedaço de chão predileto, para finalmente darem início a uma breve jogatina. Uns avançavam na campanha, outros lutavam pela sua honra no modo Mario VS. Luigi, e alguns desafiavam-se nos minijogos. Fosse qual fosse o modo, todos estavam efetivamente a jogar NSMB……Exceto quem não tinha o jogo, ou sequer a consola – o meu caso. Tudo bem, porque eu estava plenamente radiante a incorporar os cordões humanos que se formavam em torno de cada jogador de NSMB e a rabiscar com tinta permanente no meu lobo temporal o desenho de todos os níveis e a localização de todos os segredos. Senti-me a última bolacha do pacote após descobrir o truque que fazia Mushroom Houses extra surgirem no mapa, e podem crer que abusei deste conhecimento na altura para ter oportunidades (de escassos mas felizes segundos) de usar a consola de colegas que me pediam recorrentemente para fazer a minha magia. Antes de saltar para a Bandeirola no momento certo, ditado pelos últimos algarismos do temporizador, conduzia sempre o meu teatrinho de dar uns saltos, corridas e groundpounds toscos, para distrair os meus amigos do que realmente estava a acontecer e aumentar a vida útil desta fraude!Pouco mais tarde, eu viria a experienciar a campanha por mim mesmo e a terminá-la a 100% vezes e vezes sem conta, quando uma abençoada colega me emprestou uma DS Lite, e aproveitei a deixa para incessantemente desafiar amigos no acérrimo modo VS., que criminalmente nunca foi recriado nas sequências. Previsivelmente, a febre esmoreceu e todos continuaram com as suas vidas... exceto este eterno pirralho que aqui vos escreve. Eu mantinha a ânsia de experimentar mais das aventuras Mario 2D, o que culminou na adopção de uma Wii pelo meu núcleo familiar, e daí iniciou-se o efeito dominó que levaria às aquisições mais tardias de uma 3DS, uma Wii U, uma PS4... Portanto, esse breve período foi o fator singular e determinante que me condicionou a comprar, jogar e pensar demasiado sobre videojogos para o resto da minha existência, e desviar-me irreversivelmente do futuro perdido em que faço algo útil com esta vida.
Esse Tiago contou-vos onde, como e quando New Super Mario
Bros.. Mas hoje, reflito: porquê New Super Mario Bros.?
New Super Mario Bros. (NSMB) não foi o meu primeiro, segundo,
terceiro, ou vigésimo jogo. Não foi sequer o meu primeiro platformer, e
muito menos o meu primeiro jogo com o Original Nintendo Seal of Quality. Já
tinha dado os primeiros passos no meio com GameCubes e PS2s de primos, e navegado em
todas as direções com o Magalhães. Bebi de pênalti a minha dose de Moorhurn
Karts e jogos .swf rafados, mas fiz a justa depuração por GTAs, Plants VS.
Zombies e afins. Apesar desse currículo escrito entre jatos de lama e lápis-lazúli, é
NSMBDS que divide a linha do tempo em duas eras de um jogador; o rapaz que
tanto pegava num livro, como num DVD, como num jogo de tabuleiro, e aquele para
quem os botões dos comandos são as suas quartas falanges.
Como conseguiu o platformer da DS transformar-se num
meteoroide com um impacto capaz de desviar a trajetória de uma vida? O
Tiago de hoje não se recordava. Passaram os anos, e nunca fui feito refém das
experiências cardinais da minha infância, vejo incólume através de filtros de
algodão e alfazema com que a nostalgia deturpa o passado. Espantosamente, não abro
uma exceção nem sequer ao jogo que arrancou tudo. Ao pai do meu
entusiasmo crónico por Mario, pela Nintendo, por jogos. Não há ano em que não
retorne a um dos New Super Mario Bros.. Quase sempre, o escolhido é New Super Mario Bros. U ou New Super Luigi
U, por vezes New 2. Mas nunca é DS (e ainda menos Wii). 
Regressei este ano ao lugar onde fui petiz. E, de facto,
assenti em aprovação para o ecrã da DS quando reconhecia os avanços que o agora
clássico, então ressurgimento trouxe à série mais reconhecida da Nintendo. As
Star Coins e Red Rings que dão maior controlo aos desenvolvedores sobre o modo
como atravessamos secções individuais e permitem aprazer jogadores de todos os níveis de
habilidade, os wall jumps e ground pounds que sofisticam a
movimentação de Mario e, por conseguinte, as possibilidades de desafios e obstáculos, o
estilo artístico que mistura modelos 3D e sprites 2D numa modernização visual
que não abdica da cor e sonho, a infinidade de inimigos e bosses únicos
com que somos surpreendidos a cada salto (muitos dos quais nunca regressaram
nas sequências, à semelhança das suas músicas de ambiente). A transição das
franzinas Game Boy e Super NES para a jovem Nintendo DS foi capitalizada ao
extremo, e quase torna a evolução do platformer numa revolução; uma
fénix renascida que, mantendo o ADN da ave finada 14 anos antes, nos deslumbra
com uma penugem mais garrida, musculatura viçosa e reflexos vivos irreplicáveis
nos hardwares anquilosados do passado. 
Porém, também assenti em vindicação quando finalmente
processei o grande culpado, previamente anónimo, que me afasta de NSMB quando busco a minha fast food virtual de cada dia: o level
design. Entre os quatro New Super Mario Bros., é discernível um contínuo de
aprimoramento em método e articulação, e o título inaugural tem o azar de
encerrar o extremo inicial deste espectro. É claro que existem desafios avulso
que ecoam a excelência moderna, como W2-6, a torre do W5, W8-3, e o castelo do W6, mas
a própria necessidade de os nomear é patognomónica do problema.
Por regra, NSMB não investe na progressão e
entrelaçamento de ideias, mas sim na alternância de mecânicas. Eu poderia
cortar um sortido de níveis em blocos, salteá-los e
servir-vo-los novamente no prato, e as vossas papilas gustativas não me
flagrariam. O fio condutor não se perde, porque muitas vezes nunca foi tecido.
É o que sinto em níveis que, atingido o checkpoint, dão uma guinada em
direção a desafios sem qualquer ponte de ligação com os segmentos anteriores,
ou locais que atiram para o mesmo pote 3, 4, 5 gimmicks ou inimigos
distintos (já desconsiderando os Goombas e Koopa Troopas, comummente empregues
como vírgulas e não como verbos), contribuindo para o bolo final com ruído e
não musicalidade. Como se não bastasse, imensos níveis terminam antes
de Mario poder dizer "It’s a Me" e chocam-me com os seus checkpoints
precoces à distância de 3 ou 4 pulos pífios; é inviável redigir uma história
num canto rasgado de um post-it.
De vez em quando, lá se escapa um “era uma vez” dos lábios dos devs. Debruço-me
com atenção, atento nos peões, bispos e cavaleiros que a Nintendo coloca no
tabuleiro, esperando um esbarrar de ombros e dorsos e lanças. Debalde; a
colisão parcamente acontece. Muito pelo contrário, NSMB tende a desenvolver-se em trezentas linhas narrativas paralelas, praticando uma
sincronia asséptica que mantém cada macaco no seu galho. Diga-se de passagem, é
uma infinidade de linhas suculenta, quer pelo seu meticuloso empratamento
intrínseco quer pelos controlos estaladiços e melífluos de Mario. Muitos
defenderão até à morte o level design do jogo da DS (e com a sua razão); todavia, enquanto jogador versado em epítomes do género como Super Mario Bros. Wonder e
Donkey Kong Country Tropical Freeze, atravessar os níveis que seguem esta construção é análogo a assistir uma
sucessão de reels no lugar de um sólido filme completo. Como o Tiago de 2024 diria (e disse, na
análise de Nikoderiko):
O level design irradia profissionalismo e brio em todas as suas pequenas secções individuais, quase sempre respeitando a fluidez da nossa progressão e a límpida curva de dificuldade. Quando estas secções são encadeadas num nível completo, já se notam fragilidades: é usual serem destacadas e utilizadas quantidades excessivas de inimigos e gimmicks únicas num só nível, o que prejudica a sua devida articulação.
É impossível fazer jus a tantas ideias sem lhes dar espaço para respirar e, quando estas não são apresentadas numa curva crescente de complexidade e num clímax conclusivo, os níveis individuais perdem a capacidade de contar uma história pelo seu design e não se distinguem individualmente na nossa memória. Não é motivo para alarme; isto só significa que, na pior das hipóteses, estamos a jogar níveis do estilo de Super Mario World em vez de
Donkey Kong CountryNew Super Mario Bros. U, trocamos um manjar divino por outro.
In fine, New Super Mario
Bros. foi quasi-revolucionário, é excelente, e será celebrado como o New Soup mais
ambicioso e distinto, em virtude dos seus elementos exclusivos, mas faz saltar
a minha veia de crítico, que por conseguinte me faz saltar para os seus colegas
mais refinados do género. É o corolário que retiro desta viagem ao passado… que não foi a viagem ao meu passado.
Não foi no âmago deste Tiago que NSMB
tocou; foi no daquele que carece do portfólio de experiências que rege o seu patamar
de exigência contemporâneo (muitas delas nem existiam), daquele que precede a angiogénese
que dobrou essa veia de crítico. Um rapaz de outra Idade, uma em que precisava
de olhar para cima para encarar uma Terra fascinante e mágica, antes de alguns
pulsos de hormona de crescimento e androgénios estreitarem a sua visão e desbotarem
o seu pensamento.
Hoje desconstruo a realidade, outrora aceitava-a de olhos fechados. Era recetivo e otimista, mas também desinteressado e sem filtro. Todo o jogo que viesse à rede era peixe; se joguei algo decente nos anos verdes, peço desculpa, não foi de propósito.
NSMB mudou essa realidade. Era fácil engrenar num ritmo mecânico nos meus outros jogos de infância, tendencialmente de estilo árcade e/ou limitados na sua perseguição de realismo; mas Mario atira-nos bolas curvas a cada Bandeirola alcançada. Todos os intervalos espremidos entre as aulas podiam ser resumidos a jogatinas de Mario na DS, mas esse retrato simples não encerra um quotidiano rotineiro, mas sim um constante fluxo de novidades, surpresas e momentos imprevisíveis.
Enquanto a qualidade e variedade
do platformer me manteve magnetizado até ao cair dos créditos, o charme do
seu mundo deteve-me além deles. Um charme independente de pirotecnias, alicerçado
num universo em que o bizarro é o normal e encontrar normalidade seria bizarro. Onde humanos crescem e mingam ao comer cogumelos, princesas são raptadas por tartarugas que
cospem chamas, e todas as criaturas suspendem a sua vida para dançar quando ecoa um bah-bah. E ainda assim, as suas espécies, regras e status quo
eximem-se de apresentações, as cinemáticas são fugazes e diretas, o diálogo
escreve-se por onomatopeias. Recebemos o suficiente para adubar a imaginação de um cachopo e
exortar a sua massa cinzenta a preencher as lacunas como desejasse, ou aprofundá-las
com mais toques idiossincráticos – tantos quanto a expressão ingame do jogador permitisse.
Ao rejogar New Super Mario Bros.,
dei por mim a repetir rituais enraizados, apenas lógicos no cérebro de uma criança.
Quando derrotava o Bowser Jr., precisava de aterrar de costas para ele antes da
cutscene de vitória se desenrolar, como que apagando a prova do
massacre. Quando iniciava uma bonus room com autoscroll, agachar-me
ao som da música era mais natural do que respirar. Quando subia à garupa do plesiossauro Dorrie, contrariava todos os instintos de sobrevivência e apoiava-me na sua acanhada
cabeça como DiCaprio na proa do Titanic, também eu me proclamando rei de um
outro mundo.
Até nos defeitos que apontara à
campanha o petiz Tiago esboçava um motivo para celebração; há um peso, duas
medidas. O Tiago com barba rasga os power-ups inéditos por serem
extremamente situacionais: o frágil Mini Mushroom e a desengonçada Blue Shell apenas são oportunos para desbloquear caminhos secretos, o Mega Mushroom espalhafatoso nunca complementa o level design, apenas o oblitera. Condena-os por
serem parcamente utilizados pelo jogo inteiro e as Fire Flowers serem o único
poder a que nos agarramos pela maioria dos Question Blocks normais (o que
tornava a variedade aparente de power-ups inferior à de Super Mario Bros.
3). Exaspera perante certos segredos opcionais que reclamam power-ups com
que não nos cruzávamos há dezenas de níveis, garroteando a suavidade do nosso
avanço com backtracking supérfluo.
Ao Tiago a quem o banco da frente estava vedado, só interessava o sentimento de omnipotência quando varria níveis inteiros com Mega Mario, ou o luxo de ostentar o Blue Mario por uns breves momentos. Os inconvenientes episódios de backtracking tornavam-se pequenos calvários plenos de suspense e conquista, em que carregava com mãos trémulas a preciosa habilidade até um distante destino – como que já vivenciando as sidequests de Grey Mourner em Hollow Knight, aqui dimensionadas para aqueles que ostentam dentes de leite. Os colecionáveis opcionais mais obtusos que hoje me arreliam eram mistérios resolvidos por 30 cérebros verdes em rede, que iam tornando a “platina” possível a cada tropeção que davam nas suas respostas, dotando a aventura pelos oito mundos de um companheirismo caloroso.
Hoje, esse companheirismo é nulo, mas nessa era dourada era uma constante, que saía espevitada nos modos extra do pacote. À campanha plenamente concretizada, somava-se um modo Versus. eletrizante e infinitamente rejogável e um soberbo espólio de minijogos de festa que fez da compra de Mario Party DS um luxo e não uma necessidade. Nunca tive oportunidade de me saturar da campanha, sempre esticada até ao horizonte pelos interlúdios incontáveis de bulhas amenas; em memórias nas quais o Reino Cogumelo e os dois ecrãs da DS obscurecem-se no pano de fundo para ceder o plano principal às gargalhadas, uivos e provocações que reverberavam pelo autocarro da escola.
Até me cruzar com NSMB, nunca havia visto uma oferta tão magnética,
tão galvanizadora, tão definitiva em si mesma; era uma Arca de Noé de estilos
de jogo. Se NSMB não seria eterno, parecia. E ainda assim, era ele que já me empurrava subrepticiamente para New Super Mario Bros. Wii, Super Mario Galaxy, 3DS, Wii U, PS4, prendendo-me numa bola Katamari de jogos, consolas e comandos progressivamente maior.
New Super Mario Bros. nunca foi apenas New Super Mario Bros.. NSMB foi a toca de coelho por onde caí sem retorno no mundo Mario, o cavalo de Tróia pelo qual os esporos do mundo dos videojogos se esgueiraram e estabeleceram raízes. Hoje desconsidero-o como imperfeito; em tempos, ele mostrara-se perfeito pelas suas imperfeições. Numa estufa, fui guiado pelas passagens que mais amo – o prazer visceral de deslizar por desafios de platforming, a maravilha de renascer num mundo completamente à margem da realidade, as rivalidades amistosas e inesquecíveis de competições que amalgamam sorte e habilidade. Acima de tudo, diverti-me. E desde então, em cada novo videojogo que experimento, é no calor da sua sombra que continuo a fazê-lo.
Autor do Artigo: Tiago Sá
 
        Reviewed by Tiago Sá
        on 
        
novembro 03, 2025
 
        Rating: 

.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)








Sem comentários: