Cheguem aqui, bem perto. Preciso de vos confessar um segredo: eu estava bem contrariado quando conceptualizei esta análise. Não é por eu não querer falar sobre The Last of Us Parte II Remastered; acreditem que eu estou mortinho para descarregar um longo, longuíssimo sermão aos peixes sobre a última história original da Naughty Dog. Todavia, um conjunto particular de circunstâncias fez deste texto tanto um momento como um veículo indesejado para vocalizar a minha opinião.
Desde logo, a minha primeira jogatina trouxe-me a descoberta de que a minha GPU deu o berro. O mesmo computador que, em janeiro, rodava Indiana Jones and the Great Circle com a suavidade inabalável de uma bola de golfe a rolar sobre uma barra de manteiga, agora bufava a cada input dado, incapaz de segurar por um instante a taxa de fotogramas. Passei de ter um build que, posicionando-se entre as specs “Recommended” e “High” do jogo, me permitiria tecer uma apreciação da qualidade da otimização, para um pedaço de lata inviável para sequer terminar o primeiro capítulo da história.
O meu bote salva-vidas foi a Steam Deck, que me permitiu fechar a página neste conto de perda e vingança. E este é um bote salva-vidas surpreendentemente luxuoso: utilizando o preset de definições gráficas Steam Deck preparado pela Nixxes, o mundo da Naughty Dog mostrou-se graficamente similar ao da edição PS4 - o que para outro lançamento poderia ser um insulto, mas aqui é uma constatação de como a beleza do jogo se mantém deslumbrante e irreplicada 5 anos mais tarde. Podemos encontrar uma menor nitidez global (que apenas é incomodativa se jogarem num monitor externo), alguns efeitos visuais mais rudimentares (i.e. na água), e um estranho problema de flicker luminoso em ambientes escuros que torna algumas salas em pequenos céus estrelados, mas continuam presentes as regiões detalhadas e os modelos/animações extremamente expressivos e naturais que firmaram os figurantes da Naughty Dog como os humanos mais humanos dos videojogos, dentro de uma das realidades virtuais mais impressionantes do meio.
É estonteante rever qualquer screenshot do título e lembrar-me que o estou a desfrutar num dispositivo de 15W. E com a engine em movimento, este encanto redobra-se: longe da performance deplorável de The Last of Us Parte I no PC, a sequência apresenta-se na consola portátil da Valve sem crashes ou glitches de relevo e segurando-se a 29-30FPS, com raríssimas quedas da taxa de fotogramas. A performance na humilde Steam Deck é tão auspiciosa que estou certo de que o port se comportará à altura em builds fixos mais imponentes, ainda para mais quando esta versão surge bastante completa com compatibilidade total com os comandos DualSense, HDR, taxas de fotogramas até 360FPS, e suporte a resoluções ultrawide e às muletas de performance mais modernas de upscale e frame generation (DLSS 3.7, FSR 3.1, e XeSS 1.3). Claro que, durante a experiência, a ventoinha da Deck parece preparar-se para uma descolagem e que uma carga completa da bateria só rende 1h30m de jogo (se tanto), mas este é o custo incontornável para que uma jornada que nos impressionara na PS4 o possa voltar a fazer no parque, no avião, num tuctuc.
Quando falo em “impressionar”, refiro-me não só ao grafismo realista, mas também à história ensanguentada de Ellie. E quando digo que a história é impressionante, não estou necessariamente a elogiá-la. The Last of Us Parte II é fraturante por design; o enredo penetra e retorce-nos no âmago para propulsionar à flor da pele todo e qualquer sentimento, exceto a indiferença. Ao degustar a obra da Naughty Dog, sentirão revolta, ou catarse, ou perplexidade, ou arrebatamento, ou tudo ao mesmo tempo. Como uma panela de pressão a chorar por alívio, quererão discutir, louvar, demonizar a narrativa e as escolhas do diretor Neil Druckmann. Em 2020, embateram críticos contra críticos, jogadores contra jogadores, ad hominem contra ad hominem, em artigos defensivos apaixonados, caixas de comentários imensuráveis, e inflamados ensaios de várias horas no YouTube, uns em cima dos outros como as gotas agrestes e impetuosas de uma tempestade.
Naturalmente, não fiquei alheio a esta torrente de emoções. Anseio por dissertar sobre o jogo... mas não na forma de uma análise. Sabem o que significava analisar The Last of Us Parte II em 2020? Os jornalistas responsáveis pela cobertura no lançamento tiveram de obedecer a várias orientações restritivas: estavam impedidos de discutir quaisquer acontecimentos ou personagens após o terceiro dia ingame, de descrever qualquer cinemática, ou da segunda personagem jogável, que controlamos durante uma larga porção da campanha e que introduz particularidades relevantes na jogabilidade. Perco o fôlego só de imaginar o quão asfixiante seria preparar uma análise com estas restrições de conteúdo, quando já me sinto agrilhoado pelo mero bom senso de um crítico de videojogos.
Projetei diversas formas de tocar com uma longa vara nas qualidades e defeitos da campanha, apenas para me despedir de todas as frases redigidas num consternado segurar do backspace. Tentar criticar conclusivamente The Last of Us Parte II sob estas diretrizes é como procurar descrever uma cor sem recorrer a exemplos práticos. Qualquer apreciação do guião (e da jogabilidade, que só consigo julgar na dependência do enredo) teria de ser vaga, para não dizer genérica e vazia. Um texto construído de generalismo a generalismo solicitaria uma segunda crítica mais profunda e decisiva, que olhe os spoilers olhos nos olhos - e, já que avizinho este texto no horizonte, mais vale não manchar a resenha do futuro com um aglomerado de redundâncias no presente.
Se a incumbência de analisar a Parte II me tivesse caído no colo em 2020 (lançamento original na PS4) ou 2024 (versão Remastered na PS5), eu engoliria esta indignaçãozinha de uma infantilidade snobe. Graças a Deus ou, melhor dizendo, ao Filipe Mesquita, não tenho de o fazer. Foi ele quem analisou as duas versões anteriores da campanha no GameForces e, em ambas as apreciações, decretou-se arrebatado por aquele que nomeou como “o melhor trabalho da Naughty Dog até à data, um em disputa para ser o melhor jogo da geração [PS4]”. Deixo-vos com alguns trechos das suas eloquentes críticas, que vos instigo a lerem por inteiro nas hiperligações acima.
Eis uma novidade para quase ninguém: a história de The Last of Us Part II é fenomenal. Das melhores que podemos encontrar neste meio de entretenimento, de facto. As narrativas de perda e de vingança que se alimentam mutuamente, num círculo vicioso (quase) inquebrável, com fogachos de busca pela redenção e pela humanidade onde esta parece não existir é inigualável. É um estupendo tratado sobre o ciclo de violência, sobre os ganhos indesejados que dele advêm – as cicatrizes, o trauma, o ódio ao outro e ao próprio -, e sobre as dolorosas perdas que se tem quando se envereda por esse caminho – de vidas humanas, de amor próprio e o dos que nos rodeiam. Ao mesmo tempo, é uma belíssima constatação do óbvio: somos todos humanos, capazes dos maiores atos de amor e de compaixão, mas também dos mais atrozes atos de destruição; aquilo que nos une será sempre muito mais do que o que nos separa, mesmo quando, do outro lado, está toda a fonte e o alvo do nosso ódio.
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The Last of Us Part II Remastered não é um lançamento para todos, mas é uma oferta de valor inegável. É uma proposta irrecusável para os fãs desta extraordinária série que queiram (re)viver uma das melhores narrativas do nosso meio, bem como para os jogadores que gostam de mergulhar no processo criativo de produções desta escala. Já os que procuram uma experiência diferente poderão encontrar algo de interessante no modo Sem Regresso, ainda que não seja uma experiência obrigatória, nem para quem adora o jogo base, nem para o mais fascinado por experiências roguelike. No seu todo, este é um título fenomenal, recheado de conteúdo variado e de qualidade elevadíssima, mas cujo regresso vai valer mais ou menos a pena consoante a quilometragem com que já vêm ou o quão fanáticos são pela viagem aqui oferecida.
Por enquanto, detenho-me nos bastidores e protelo para um momento posterior a minha verdadeira exploração dos objetivos e execução do projeto intrépido da Naughty Dog. Posso-vos adiantar que não assino por baixo da opinião do Filipe, mas isso em nada condiciona a minha recomendação segura de The Last of Us Parte II Remastered no PC.
Se já passaram por esta obra no passado, podem encontrar novos motivos para a revisitar com os conteúdos exclusivos das versões PS5 e PC, incluindo o modo Sem Retorno, que aplica as mecânicas de jogabilidade a um modo roguelike (ugh) sem qualquer peso narrativo, e os elucidativos e fascinantes registos do processo de desenvolvimento do título.
Se não o fizeram, não garanto que amarão o título, nem sequer que não o odiarão; todavia, todos os jogadores do primeiro jogo deveriam continuar com confiança as peripécias de Ellie, com o mínimo de informação possível: pelo melhor ou pelo pior, a jornada será penetrante e inesquecível como poucos videojogos o são, e revelar-se-á uma think piece que vos continuará a inquietar muito após o fechar dos créditos. É comum referirmo-nos a qualquer título como uma experiência, mas The Last of Us Parte II é das campanhas que me fazem reconsiderar este vício. O seu percurso decorre na consola/PC, no nosso cérebro e alma enrubescidos, nas reflexões e discussões que o seu final nos arranca do peito; em todas estas paragens, sai justificada esta designação e toda a conotação que dela se pode extrair.
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Steam e experienciada integralmente na Steam Deck, através de um código gentilmente cedido pela editora.
Autor da Análise: Tiago Sá

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