[Análise] Deadly Premonition: Origins [NSW]

Em qualquer indústria do entretenimento, vamos encontrar certas criações que fazem espécie à maioria das pessoas, mas que acabam por ganhar um estatuto de culto por ter angariado um grupo de fãs incondicionais. No cinema, o exemplo mais óbvio é The Room, e depois de 2010, Deadly Premonition foi o jogo que ganhou essa distinção. Foi mal recebido pela generalidade da crítica e um caso de insucesso no que a vendas diz respeito, mas um número reduzido de fãs viu algo mais neste projeto, ao ponto de uma sequela ter sido anunciada e uma reedição ter chegado à Nintendo Switch, intitulada Deadly Premonition: Origins. Mas será esta versão outra premonição desastrosa, ou será a origem de algo diferente?


Como seres humanos, é habitual formarmos primeiras impressões sobre tudo e mais alguma coisa. Com cinema, a cena de abertura pode ditar o nosso humor no resto do filme; com outras pessoas, a primeira impressão pode ser determinante no nosso comportamento para com alguém desconhecido. Tudo isto é natural, porque não exige muito esforço e pode poupar-nos tempo e recursos. Mas as primeiras impressões são extremamente falíveis, e estas opiniões rápidas e automáticas podem sair completamente erradas.

Como o leitor já pode ter depreendido, Deadly Premonition: Origins causa uma primeira impressão muito forte, e pela negativa. Ainda antes de chegarmos ao menu principal, somos tratados com uma cena cinemática que, embora derradeiramente intrigante, se apresenta visualmente dura de roer. A definição gráfica é chocantemente má, as animações são rudes e rígidas e todo o design sonoro causa estranheza. Mas se resistirmos à tentação de desinstalar o jogo, descobrimos que há algo mais nesta experiência, e que estamos perante um caso onde a primeira impressão falhou redondamente.

Em Deadly Premonition: Origins, assumimos o papel do agente do FBI Francis York Morgan (doravante York, como todos o tratam), que chega à fictícia cidade rural de Greenvale. Esta chegada tem como propósito investigar o misterioso assassínio de uma jovem de 18 anos, cujo corpo foi disposto de forma elaborada e chamativa numa floresta. York junta-se ao xerife George e à xerife delegada Emily nas suas investigações, recolhendo provas e analisando o perfil do assassino de acordo com as evidências encontradas. Rapidamente, York chega à conclusão de que esta morte está relacionada com uma série de assassinatos que tem vindo a investigar por todos o país, ao encontrar no local do crime as mesmas sementes vermelhas com as quais se tem vindo a cruzar recentemente. Assim, começa um mistério com contornos sobrenaturais, dando forma a uma narrativa envolvente e genuinamente interessante, que responde a questões do passado e com implicações para o futuro de York e de toda a população de Greenvale.


Com uma premissa interessante, qualquer história de investigação e mistério é apelativa. A dificuldade, é continuar a desenvolver dita história sem perder fulgor, e aqui encontramos um dos pontos de destaque de Deadly Premonition: Origins. Os acontecimentos vão ficando cada vez mais misteriosos e, por vezes, confusos à medida que vamos avançando na história, em grande parte pela narrativa criativa e bem pensada, mas em maior parte pelas personagens envolvidas. Todos os cidadãos de Greenvale se comportam de forma bizarra e suspeita, dando a impressão de terem algo a esconder, e a dada altura toda a população pode perfeitamente ser o mau da fita neste mistério. De facto, um dos momentos altos da experiência é quando juntamos toda a cidade no centro comunitário e temos de falar com cada cidadão e conhecê-los melhor. Naturalmente, encontramos alguns estereótipos nestas interações, mas estes são apresentados de forma tão distinta e exagerada que é impossível não achar apelativo e retirar alguns momentos de humor e boa disposição.

Mas a estrela da companhia é mesmo York. Socialmente inadequado, ingénuo e sempre com uma referência a cultura popular no bolso, o agente do FBI apresenta-se como o mais bizarro de todos, em grande parte pelas constantes conferências com o seu “amigo” Zach, invisível para todos os que o rodeiam. É a York que pertencem a maioria das falas mais peculiares, despropositadas e, por vezes, lamechas, causando estranheza em todos os que o rodeiam. Mas York mantém-se sempre imperturbável perante as reações alheias e continua a sua postura desconcertante, tornando-o um dos protagonistas mais interessantes e, até certo ponto, relacionáveis em videojogos. Desta feita, há que destacar Jeff Kramer, cujo desempenho exagerado e, por vezes, desconcertante tem um papel fundamental na elevação desta personagem.

Uma grande porção desta bizarria, tanto de York como da restante população, é enaltecida pela direção artística, em particular no modo como esta se reflete nas animações. É certo que algumas das falas são já estranhas, despropositadas, até desconcertantes, mas o que vemos no nosso ecrã hiperboliza todas estas sensações. As animações conferem um tom excessivamente teatral às cenas, por vezes até “cartoonesco”. Tudo isto leva-nos a questionar se estamos perante um jogo do início do século ou até um filme de orçamento baixíssimo e reduzido valor de produção. Nada nisto devia funcionar, e devia estar aqui a descrever como esta opção prejudica a experiência geral, mas não estaria a ser sincero. A verdade é que tudo isto é coerente com o tom da narrativa, com os desempenhos e com a bizarria que se pretende alcançar. Estas animações acabam por contribuir para importantes momentos de leveza cómica e dão um charme muito próprio e único a toda a experiência.


Quanto à jogabilidade de Deadly Premonition: Origins, há que dividir a ação em duas vertentes: uma no “mundo real”, onde York interage com outras personagens e explora Greenvale, e outra numa espécie de “mundo paralelo” para o qual é arrastado quando chega a uma área de interesse da investigação. Focando-nos no mundo real, vamos tendo certos objetivos para cumprir dentro de um certo limite de tempo, tendo de planear as nossas ações e deslocações conforme os horários da população. No entanto, os horários para cumprir são maioritariamente largos e permitem que exploremos bem Greenvale e que possamos interagir mais com a sua população, podendo conhecê-la melhor e aprofundar as várias personalidades e relações através de algumas missões secundárias. Há outras atividades secundárias, como pescar ou encontrar alguns colecionáveis, mas o mais interessante da jogabilidade no mundo real é a resolução de puzzles. Algumas personagens gostam de desafiar York, obrigando-nos a explorar bem os vários ambientes que vamos frequentando para resolver problemas que abrem portas ao progresso na história. Os puzzles nunca são demasiado óbvios nem demasiado rebuscados, dando uma variedade bem-vinda e até prazerosa à experiência.

Agora, o modo como se controla York tem algo que se lhe diga. Quando estamos a pé, os seus movimentos apresentam-se algo rígidos e pouco naturais. Felizmente, isto acaba por ser colmatado por uma câmara responsiva e fácil de controlar, resultando num aspeto da jogabilidade inicialmente estranho mas que cumpre os requisitos. O mesmo não pode ser dito pelas mecânicas de condução, sem dúvida o aspeto mais negativo de todo o jogo. Manobrar tanto o carro como a câmara nestas instâncias é abismal, com ligeiros toques nos analógicos a levarem a ações descontroladas do que vemos e do que fazemos. Este é o único problema do jogo que prejudica seriamente a experiência, levando-nos a questionar o porquê de termos de nos fazer à estrada tantas vezes e durante tanto tempo para progredir na história.


Olhando agora para o que se passa no “mundo paralelo” de Deadly Premonition: Origins, é nestas secções que York recolhe a maioria das evidências e que decorre o combate. Sabemos que nos encontramos numa secção assim quando o espaço à nossa volta se torna mais sombrio, com cores mais avermelhadas e com vários elementos paranormais, como inimigos zombificados. Primeiro estranha-se esta mudança ambiental algo desprovida de lógica, bem como a atitude despreocupada de York, mas rapidamente nos deixamos envolver e apreciamos a variedade apresentada. O facto de estas secções se encontrarem bem desenhadas e de ser recompensante explorá-las e ir encontrando novas provas do crime facilita esta apreciação.

Também o combate acaba por ser gratificante e desafiante, apesar das mecânicas algo atabalhoadas. Com armas de fogo, temos de clicar num botão para apontar, manipular uma mira por vezes rápida ou lenta demais, e disparar. Quando estamos a apontar e a manipular a mira, não conseguimos mexer York, pelo que temos de medir o custo/benefício do nosso posicionamento e distância para os alvos. Com armas corpo a corpo, a dinâmica é um pouco mais mexida, mas qualquer ataque leva a alguns segundos de animação inevitáveis, pelo que o nosso timing tem de ser bem medido. Isto faz com que esta jogabilidade tenha um ritmo pára/arranca, sendo necessária alguma habituação. No entanto, pode tornar-se um aspeto deleitável da experiência, culminando em alguns encontros com bosses criativos, desafiantes e, em concordância com toda a experiência, bizarros.

Para terminar esta secção da jogabilidade, há que mencionar que neste “mundo paralelo” nos vamos cruzando várias vezes com o assassino. Estes encontros decorrem de uma de duas formas: um minijogo de escondidas, ou uma sequência de fuga. Tanto uma como outra apresentam uma jogabilidade com designs algo estranhos. Na fuga, teremos de abanar um dos analógicos para que York corra, ocasionalmente interagindo com obstáculos, trepando-os ou empurrando-os do caminho em animações rígidas e lentas. Depois, há ocasiões onde nos escondemos numa sala e temos de esperar que o assassino desista de nos procurar, por vezes clicando num botão para suster a respiração. Estes momentos apresentam alguma tensão, mas no final de contas acabam por não acrescentar muito à experiência ou, até, por prejudicar o ritmo do jogo.


Portanto, estamos perante uma experiência que apenas pode ser descrita como bizarra, maioritariamente no bom sentido da palavra. Uma outra vertente que contribui para tal é o design musical e sonoro. Durante uma cutscene, podemos perceber que a música de fundo vai mudando radicalmente de tom, com uma cena séria a ser interrompida por uma música animada e leve. Também os efeitos sonoros parecem ter sido retirados de filmes de terror ou de westerns antigos, dando a sensação de que não se adequam. Estes momentos são sem dúvida desconcertantes, e alguns verão esta dissonância como algo problemático, mas outros olharão para tudo isto como simulando a experiência de um B-Movie interativo, dando algum charme único a Deadly Premonition: Origins.

Recuperando um pouco uma ideia inicial, a vertente visual do jogo é fraca se olharmos objetivamente para a questão. Sobretudo nas cenas cinemáticas, a resolução gráfica é baixíssima, as texturas parecem imagens impressas num papel e lá coladas, e alguns dos modelos apenas podem ser descritos como feios. Muito disto pode ser atribuído à direção artística do jogo e de querer dar a sensação de estarmos perante num projeto amador e com um orçamento baixo. Embora esta opção inexplicavelmente funcione na maioria as ocasiões, é desapontante ver o pouco trabalho levado a cabo sobretudo no que toca às cutscenes puramente cinemáticas, onde a definição gráfica já era aberrante aquando do lançamento da versão original deste título em 2010.

Por fim, há que olhar para o desempenho técnico do jogo. Na maioria das ocasiões, o jogo corre de forma estável nos 30 frames por segundo, e nunca encontrei problemas de atraso entre o input no comando e a ação no ecrã. No entanto, há algumas ocasiões nas quais este desempenho quebra um pouco, como quando estamos rodeados por múltiplos inimigos ou durante a condução. Ainda na condução, é estranho verificar que quando o velocímetro indica velocidades mais elevadas, temos a sensação de estar a conduzir mais devagar, dando a sensação de que o jogo não consegue acompanhar a renderização que conduzir a essas velocidades exige.


Conclusões

Deadly Premonition: Origins é um jogo bizarro, daqueles que se detesta profundamente ou que se adora com tudo o que se tem. Há muitos problemas que se lhe podem apontar e muitas opções de design que deviam levar a que nada funcionasse. Mas a verdade é que não só funciona, como é uma das experiências mais fascinantes da indústria. Se se conseguir ignorar fraca resolução gráfica, e se se conseguir adaptar à jogabilidade, Deadly Premonition: Origins tem uma história interessante, personagens apelativas e imenso entretenimento para oferecer. O todo é mais que a soma das suas partes, e quem decidir entrar neste mundo de mente aberta irá encontrar um todo recheado de charme.

O Melhor:

  • Argumento bem escrito, com uma narrativa genuinamente cativante
  • Personagens algo exageradas, mas bastante interessantes e cheias de vida
  • Design sonoro e musical ajuda a dar um tom leve e engraçado

O Pior:

  • Definição gráfica é pobre, sobretudo nas cutscenes
  • Alguns percalços no desempenho técnico
  • As mecânicas de condução são abismais

 

Pontuação do GameForces – 7/10

 

Título: Deadly Premonition: Origins
Desenvolvedora: Toybox
Publicadora: Toybox
Ano: 2019


Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita


[Análise] Deadly Premonition: Origins [NSW] [Análise] Deadly Premonition: Origins [NSW] Reviewed by Filipe Castro Mesquita on agosto 07, 2020 Rating: 5

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