Análise | SHUTEN ORDER - Quimera com Cabeça, Tronco e Membros

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia. Ao ver Shuten Order apregoar tão convictamente os seus cinco estilos de jogo em um, não sou acometido pelo impulso de agitar o meu cartão de débito, mas sim por flashes de jogos como Mario Sports Superstars e 1-2 Switch, propostas que colocam todas as fichas no número de modos, minijogos, etc. para obnubilar o seu vazio de substância. Flashes que dão voz a uma cautela pavloviamente treinada e validada, mas não a um postulado absoluto - que o digam barganhas estupendas como UFO 50 e Super Mario All-Stars (Super NES). Se há estúdio com potencial para se alistar na tropa das exceções, é o de Shuten Order. Na verdade, a Too Kyo Games já se mostrou excecional em abril deste ano, quando prometeu uma visual novel nunca escala nunca antes vista e entregou o titânico e impressionante The Hundred Line: Last Defense Academy.

Então, o que nos entregam desta vez com Shuten Order? Nesta nova história, assumimos a pele de Rei Shimobe, após a rapariga ser brutalmente assassinada e desmembrada. Tendo sido ressuscitada miraculosamente num corpo provisório sem as suas memórias, Rei tem agora a oportunidade de superar o Teste de Deus e ressuscitar definitivamente. O que implica este teste? Arrancar uma confissão do seu assassino e retribuir o homicídio, num máximo de 3 dias. Ao todo, existem cinco suspeitos: os cinco ministros da Shuten Order, uma nação religiosa que ativamente reza pelo fim do mundo.

Sem o tempo do vosso lado, terão de escolher apenas um dos ministros para investigar e acusar. Na sua companhia, experienciarão uma campanha com uma linha narrativa própria, num de cinco estilos de jogo distintos: Murder Mystery Adventure (estilo Ace Attorney), Extreme Escape Adventure (escape room estilo Zero Escape, inserida num Death Game estilo Danganronpa), Multi-Perspective Visual Novel (uma visual novel típica, com escolhas que alteram o rumo da história), Romance Adventure (Dating Sim) e Stealth-Action.

Esta pluralidade de estilos é o grande selling-point de Shuten Order, mas também esconde a sua grande artimanha. Para o olhar mais incauto, Deus me valha, são 5 jogos em um! Na realidade… são visual novels. Uma pode ser uma visual novel temperada com secções de investigação e dedução, outra uma visual novel com lascas de time-management e minijogos argumentativos de sedução, mas todas são visual novels em que lerão horas a fio e, de vez em quando, selecionarão uma opção de diálogo dentro de um conjunto limitado de alternativas. A única exceção é a rota Stealth-Action que, insatisfeita com ser uma visual novel, agita as águas sendo um jogo stealth… intercalado com uma visual novel. Não pretendo de modo algum desmerecer o trabalho da Too Kyo Games ou as diferenças entre as rotas; apenas é fulcral saberem ao que vêm. A vossa apreciação de Shuten Order dependerá diretamente disso.

A história Murder Mystery Adventure possui de longe a jogabilidade mais amadurecida e floreada. É um caso Ace Attorney no grande plano, mas certas minúcias de jogabilidade ajudam a diferenciá-la. Tal como na famosa série de advogados, investigamos um homicídio para defender um réu inocente e descobrir o verdadeiro culpado, recolhendo informação em secções de Investigação para a utilizar posteriormente numa Meeting. Para além de passarmos a pente fino as regiões relevantes, devemos interrogar as personagens pertinentes e estalar os dedos (Snap) quando ouvimos algo retumbante ou peculiar; no entanto, se o fizermos na frase errada, perderemos Credibilidade, que funciona como a nossa barra de vida. (Para os versados em Ace Attorney, é como se todos os diálogos funcionassem como aquela Cross-Examination do Moe… Yikes) Já nas Meetings, formulamos teorias alicerçadas na evidência recolhida e tentamos sustentá-las e adaptá-las face ao escrutínio das restantes personagens. É uma rota interessante tanto em enredo como em mecânicas e o caso beneficia de suficientes reviravoltas e originalidade para se estabelecer como um mistério de qualidade e não uma mera imitação… ainda que o temor do sistema de Snaps me intimasse a guardar saves de reserva a cada “Ai” que as personagens soltavam e me tenha provocado um pavor irracional de encostar o polegar e o dedo médio.

A Extreme Escape Adventure é outro ponto alto de Shuten Order, embora o seu nome seja enganoso. É sugerido que esta rota se centrará em escape rooms, mas o seu foco desce sobre um Death Game reminiscente de Danganronpa. Há uma secção mais extensa que, não sendo de todo complexa, é devidamente desenvolvida e justifica fortuitamente a designação da rota; todavia, os elementos de escape rooms resumem-se de resto a puzzles isolados do tipo brain training. Mentiria se negasse que gostei de os concluir, mas estes quebra-cabeças destoam completamente dos eventos do Death Game. Death Game este que é deliciosamente sórdido e eletrizante e, mesmo sendo uma experiência maioritariamente passiva, ainda nos concede ótimas oportunidades de levar os nossos neurónios para um test-drive.


Já em Multi-Perspective Visual Novel, não há gato: tal como o nome evidencia, acompanhamos uma história assumindo os pontos de vista de diversas personagens. Regularmente, temos de tomar uma decisão pelos protagonistas, que influenciará os eventos subsequentes. Usualmente, escolher “erradamente” conduz rapidamente a um bad ending ou a outro desfecho igualmente fechado e simplório, e somos atirados para um flowchart episódico da história de onde podemos retomar os eventos num estalar de dedos (aargh!). No entanto, em raras ocasiões, o jogo permite-nos prosseguir com a história após uma opção errada e só damos conta várias escolhas mais tarde, quando o nosso pára-choques beija um scenario lock. Aqui, precisamos de perceber qual é a peça em falta (ou a mais) nesse cenário e recuar até à encruzilhada narrativa correta para a corrigir. É a vertente mais estimulante e satisfatória que a jogabilidade da rota oferece e, em última instância, é um processo que decorre quase inteiramente nos confins da nossa calote craniana. Por isso, é sobre a história em si que recaem todas as expectativas para a rota e… é booooa. Há ação, há reviravoltas, há arcos de desenvolvimento de personagens, e todos estes elementos capturam a nossa atenção q.b.; contudo, certas passagens arrastam-se em demasia e eu já estava pronto para encerrar a rota bem antes da sua conclusão.

Por seu lado, a Romance Adventure desafia-nos a seduzir três raparigas num limite de tempo, sem sermos apanhados a saltitar entre elas. Só com humor poderia esta rota chegar a bom porto e, nesse sentido, foi com agrado que vi os argumentistas espremer o ridículo desta conjuntura. Porém, dado que é demasiado fácil evitar a fúria das jovens e que esta é a rota mais desligada dos mistérios e segredos de Shuten Order (se não contarmos certos infodumps entregues de mão beijada) e até da ministra que deveríamos investigar, este desafio de Casanova não partilha a seriedade e pertinência do resto da aventura.

Por fim, Stealth Action é a mais distinta das rotas em jogabilidade, ao introduzir um sistema de controlo mais diferenciado e envolvido. Por entre os diálogos que compõem esta investigação do assassino em massa Nephilim, a Rei Shimobe vê-se perseguida pelo aterrador criminoso por uma série de corredores sombrios e claustrofóbicos. Nestas secções, controlamos a jovem por ambientes 3D numa perspetiva aérea à procura da saída, tentando escapar de Nephilim. A atmosfera é tensa sem ser asfixiante, pelo que os menos destemidos também a conseguirão encarar; porém, parte desse equilíbrio advém da simplicidade e diminuta eficácia de Nephilim como perseguidor. Não obstante, o level design capitaliza engenhosamente as mecânicas estabelecidas, o mistério central é interessante apesar de previsível, e a duração é perfeita para explorar a jogabilidade sem a saturar.

Portanto, são estas as cinco rotas de Shuten Order. No seu melhor, são capítulos empolgantes e repletos de suspense, mas aquém dos colossos que os inspiraram em complexidade e jogabilidade; no seu pior, são filmes de sábado à tarde que, não sendo metragens perdidas de Scorcese, mantêm a nossa curiosidade até ao rolar dos créditos. Por aí, poderia considerar Shuten Order uma experiência boazita, ou até mediana. Não é o caso.

Shuten Order transcende a soma das suas partes. Nenhuma das rotas individuais é satisfatoriamente decisiva pelo que, se quiserem desvendar os motivos e modus operandi do assassino de Rei e os segredos da nação religiosa, dedicarão mais de 30 horas a perseguir os cinco ministros. Garanto que fá-lo-ão com gosto, registando com regozijo todos os momentos em que a aventura da semana colide com um dos enigmas capitais de Shuten Order - dando mais uma pista preciosa para os esclarecer, erodindo grão a grão a muralha de incógnitas que assola Rei. Nenhuma das rotas é a crème de la crème, mas nenhuma precisava de ser: mais do que justificam a sua existência ao criarem um pretexto soberbo para o mesmo universo e personagens serem explorados numa multiplicidade radical de direções. Todas diferentes, mas sem nunca perderem a unidade, por força da brilhante escrita, do firme worldbuilding e de uma resolução euforizante, algo que aprendi a louvar como apanágio do estúdio. 

A direção de arte também alimenta esta sinergia: com um uso radiante e hipnotizante de cores néon nas personagens, nas arestas, nas madeixas, nas sombras, Shuten Order é provido de um dos estilos visuais mais fascinantes do género e de uma identidade visual inesquecível. Como se não bastasse, em vez de meramente introduzir novas opções à disposição pré-existente, o HUD das rotas comummente altera notavelmente a apresentação das opções, dos diálogos e até das personagens, reforçando a disparidade entre os cinco estilos de jogo incluídos e permitindo às rotas um aproveitamento apropriado das mais-valias destes sistemas.

Apesar de todo este primor, há um ponto de Shuten Order que deixa a desejar: a localização. Há raros erros ortográficos, como em qualquer VN, mas há também diálogos que ultrapassam as fronteiras da sua caixa de texto ou do ecrã de jogo. Bizarramente, em certos momentos, personagens descrevem na primeira pessoa ações realizadas por um terceiro, possivelmente sugerindo linhas traduzidas sem o contexto adequado. Felizmente, estes lapsos não foram frequentes ou graves o suficiente para eu perder o fio à meada, mas rompem com a imersão sempre que surgem e trazem uma nota de amadorismo que trai a convicção e melindre da restante experiência.

 

Conclusão

Shuten Order pode prometer cinco estilos de jogo diferentes, mas não é na individualidade das suas rotas, cativantes mas conceptualmente e mecanicamente limitadas, que desvendarão o apelo da proposta. Pelo contrário, encontrá-lo-ão na forma como estes caminhos se cruzam entre si e proporcionam uma história mais ampla, coesa e grandiosa, com o nível de criatividade e excentricidade que aprendemos a esperar dos lançamentos da Too Kyo Games.

O melhor:

  • História central original e mirabolante, plena de mistérios intrigantes…;
  • Exposta num estilo visual chamativo e vibrante…;
  • Contada através de cinco rotas narrativas diferentes, tanto em temáticas como jogabilidade.

 

O pior:

  • …Embora aquém das referências dos géneros em que se inserem;
  • Gralhas regulares na localização.

Nota do GameForces: 8.0


Título: SHUTEN ORDER
Desenvolvedora: Too Kyo Games; Neilo;
Editora: Spike Chunsoft;
Ano: 2025

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela editora.

Autor da Análise: Tiago Sá

Análise | SHUTEN ORDER - Quimera com Cabeça, Tronco e Membros Análise | SHUTEN ORDER - Quimera com Cabeça, Tronco e Membros Reviewed by Tiago Sá on setembro 06, 2025 Rating: 5

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