Os jogos AI: The Somnium Files podem
atrair os jogadores incautos com os seus mistérios labirínticos, a investigação
de crimes grotescos tanto em localizações “reais” como nos mundos oníricos dos
suspeitos (intitulados Somnia), e com um nível de produção inigualado no
género; porém, sob a superfície, são um pretexto para Kotaro Uchikoshi retornar sub-repticiamente a várias das ideias sui generis que marcaram a sua
renomada carreira. No título inaugural, a equipa de desenvolvedores coloca em prática a sua articulação diferenciada das várias ramificações de uma timeline, em nirvanA Initiative a
ideia de uma perspetiva superior à do mundo virtual é debatida pelas personagens e, com o terceiro jogo, os desenvolvedores retornam a uma premissa de jogabilidade bem ansiada pelos entusiastas da trilogia Zero Escape. Mas
chamar “terceiro jogo” a No Sleep For Kaname Date - From AI: THE SOMNIUM FILES não
é o mais correto.
Ao passo que nirvanA Initiative
espelhava a estrutura, complexidade, substância e equipa de produção do
predecessor, o novo capítulo da história de Kaname Date promete algumas rupturas com o
passado, começando pelo nome. Ao relegar AI: The Somnium Files ao seu
subtítulo, esta entrada define-se como um spinoff, um com um novo
diretor (Kazuya Yamada, que substitui Uchikoshi) e que desloca o foco para escape
rooms - uma dimensão inédita à série, mas muito, muito familiar para os fãs
de Uchikoshi.
Em vez de nos incumbir de
desenvencilhar homicídios macabros que desafiam a lógica, No Sleep
for Kaname Date decorre logo após os eventos do primeiro jogo e encarrega-nos
de resgatar Iris Sagan, depois de a internet idol ser abduzida por um
OVNI e forçada a participar em várias escape rooms envergando um cosplay de coelho. Por um lado, o detetive Date e a sua
companheira AI Aiba terão de ajudar a celebridade digital a vencer os diversos puzzles
no seu caminho para a salvar de mortes sádicas; por outro, o duo terá de
procurar pistas no terreno e explorar os Somnia de pessoas de interesse para desvendar a
identidade e motivação dos perpetradores do rapto.
É um contexto rotundamente
burlesco que imediatamente redefine as nossas expectativas para a campanha,
algo importante porque a experiência afigura-se calorosamente familiar ao
primeiro contacto. No Sleep for Kaname Date veste a capa de nirvanA Initiative,
desde o estilo artístico e a interface à totalidade das mecânicas intuitivas da jogabilidade, e dá continuidade à elevada qualidade e extravagância das cinemáticas, voice acting e escrita (em nada acusando a mudança de argumentista),
mas o estatuto de spinoff vai-se clarificando de outras formas. As
questões latentes de nirvanA Initiative permanecem sem resposta, a progressão
distribuída por várias timelines dá lugar a uma única sequência de
acontecimentos linear, a duração da campanha é cortada para 10-15h, e o número
de personagens e localizações inéditas é o mínimo necessário para o mistério
funcionar.
Nesse sentido, No Sleep for
Kaname Date é uma sequência similar a The Legend of Zelda: Echoes of Wisdom,
que coloca assets e um motor de jogo pré-existentes num novo contexto
para proporcionar aos fãs da série uma experiência refrescante. Porém, como
consequência destas diferenças, este é o primeiro AI: The Somnium Files que não
arranca o tapete debaixo dos meus pés com as suas revelações; aliás, é provável
que vocês as antecipem quando traçarem as linhas entre as personagens inéditas, os
mitos urbanos ruminados pelas personagens e as questões centrais do enredo. E ainda que alguns elementos sugiram que a trama namorará certos temas mirabolantes de Uchikoshi, estas sugestões não passam de provocações sem uma real exploração. O
enigma central é simples em premissa e básico em resolução... mas é difícil
manter um dedo apontado a uma escolha de design claramente consciente.
Não é o vazio de investigações criminais que este spinoff vem preencher, e não é por elas que o devem experimentar. Devem fazê-lo para matar saudades das suas personagens inesquecíveis (tanto as do primeiro jogo como as originárias de nirvanA Initiative, por mais bizarro que seja vê-las introduzidas em catadupa um só dia após os eventos do original), numa história que mantém o exímio entrelaçamento de momentos cómicos e absurdos com potentes murros emocionais no estômago. Até os novatos na série deixar-se-ão contagiar pelo charme e coração deste universo e investigarão todos objetos de fundo, até os obviamente irrelevantes, só para ouvirem o que Date e Aiba têm a dizer sobre eles, visto que o jogo faz um bom trabalho de reintroduzir e vender as suas personagens veteranas e pode ser plenamente experienciado sem contexto prévio; contudo, se não tiverem jogado o primeiro título de antemão, não retirarão o proveito máximo de determinados momentos emocionais.
Não vos censuro se quiserem
estrear-se na série com este spin-off pelo seu maior chamariz: as
Escape Rooms. No controlo de Iris, terão de resolver todo o tipo de
quebra-cabeças, desde desvendar códigos a partir de diagramas, vencer uma
partida do Jogo Real de Ur, dobrar e desdobrar dados temáticos na vossa cabeça, decifrar enigmas metafóricos e recolher, manipular
e estudar diversos objetos, etc.. Para finalizarem algumas das tarefas, precisarão
também de combinar itens entre si, numa mecânica que nos obriga a pensar mais
profundamente sobre as relações entre diferentes objetos, mas que infelizmente
é cada vez menos utilizada com o avanço da experiência. Em todo o caso,
variedade de desafios não falta, e a dificuldade atinge um equilíbrio
laudável e satisfatório, com quebra-cabeças que são recompensantes de superar
sem nunca roçarem a frustração ou a trivialidade, e vai progredindo
elegantemente à medida que é aumentado o número de personagens jogáveis e o
número de salas diferentes em que se espalham as peças dos puzzles. Apesar de ainda não ter finalizado nenhum jogo da trilogia Zero Escape (shame!), a experiência dos desenvolvedores na criação destes intrincados cubos de Rubik é cristalina como água quando dou por mim absolutamente grudado e enlevado por eles.
Naturalmente, para que ninguém
fique de fora, No Sleep for Kaname Date permite-vos mudar a (quase) todo o
momento entre diferentes níveis de dificuldade para cada uma das vertentes da jogabilidade
(Somnium, Escape, e Quick Time Events), modificando assim o tempo limite das
secções e o número de pistas e ajudas que receberão. Enquanto os graus mais
lenientes são acessíveis o suficiente para permitir a qualquer jogador
terminar a campanha, a dificuldade Hard das escape rooms deveria ser
menos impaciente com a revelação de pistas para satisfazer os veteranos. Em dados momentos, apenas quis
inspecionar certos objetos de interesse para um certo puzzle e a sua
descrição inocente era imediatamente substituída por um diálogo entre as
personagens que, não revelando a resposta, já nos apontava para a direção
certa.
Já no que toca à dificuldade dos Somnia, não há razão de queixa. Com nirvanA Initiative, os desenvolvedores talharam à perfeição o conceito destes segmentos. Quando entramos nos sonhos de uma personagem, o espaço surreal diante de nós traz uma sensação de imprevisibilidade e de infindas possibilidades; todavia, à primeira vista, o progresso neste espaço liminar mostra-se desancorado de qualquer noção de lógica convencional. De facto, no primeiro jogo, várias das decisões que tomamos são arbitrárias e requerem um processo frustrante de tentativa e erro; em contraposição, nas suas sequências somos encorajados a compreender este ambiente psíquico à luz da personalidade e crenças do indivíduo em questão. Seguindo esta diretiva, o irracional abre caminho a um raciocínio coerente, estimulante e à margem de todos os outros jogos de investigação. Dado o foco do jogo em escape rooms, o número de Somnia e a teatralidade dos ambientes atingiram mínimos históricos, mas o conteúdo que efetivamente está lá é um deleite de completar.
Tanto nos seus Somnia como na sua
globalidade, No Sleep for Kaname Date é curto, mas bom. O problema disso é que
não sei se saciou a minha fome por mais AI: The Somnium Files, ou se a aguçou. Chegar
aos créditos foi um momento agridoce, como se tivesse reencontrado num amigo de
longa data na rua e tivesse de lhe virar costas sem ter colocado a conversa em
dia. Nunca após terminar um jogo da série me senti tão faminto de explorar o
seu conteúdo opcional, desde caçar todos os finais secretos da história (que estão
no mesmo nível do Atami END do primeiro jogo, reservando-nos jocosos fragmentos
de insanidade) a ver todos os curtos episódios bónus do título, em que as suas
personagens interagem em contextos e peripécias (ainda) mais inusitados. Mesmo sem
o trunfo de uma história inesquecível, este spinoff recorda-nos e reacende
o coração vibrante deste universo e estilo de jogabilidade magnetizantes e
revela-se uma paragem nostálgica e calorosa no mundo de Kaname Date, enquanto a
sua próxima grande aventura não chega.
Antes de terminar a análise, uma nota sobre a performance. Joguei No Sleep for Kaname Date entre as minhas Nintendo Switch 1 e 2, e qualquer uma das consolas é uma boa opção para vivenciar a experiência. Não por o jogo rodar perfeitamente na Switch 1: a sua performance é equivalente à que apresentara em nirvanA Initiative, isto é, apresenta taxas de fotogramas baixas e modelos apelativos mas pixelizados. Porém, dada a natureza lânguida da experiência e o facto de que não há flutuações grotescas da framerate, estes problemas não condicionam notavelmente a experiência. Já na Switch 2, o jogo roda a 60FPS fixos, possui loadings mais curtos e não possui nada que se assemelhe a uma lacuna de desempenho – porém, não conseguirão escapar às personagens
pixelizadas, a não ser que comprem a versão Nintendo Switch 2 (que não tivemos
oportunidade de testar).
Conclusão
Entre os diálogos plenos de energia e insanidade e os
segmentos Escape e Somnium absorventes, No Sleep for Kaname Date oferece-nos um
microcosmo das emoções, humor, e charme do universo AI: THE SOMNIUM FILES. A história carece da grandiosidade dos
predecessores, mas os seus excelentes e refinados puzzles e a oportunidade de conviver com as suas idiossincráticas personagens equilibram a balança e fazem deste spinoff uma entrada valiosa (mas não essencial) para os seus entusiastas.
O melhor
- Escape rooms viciantes e de elevada qualidade;
- Somnia refinados;
- A mesma (elevada) qualidade de escrita, voice acting e produção dos predecessores;
- Riqueza de finais alternativos e curtos episódios extra.
O pior
- Impaciência na revelação de pistas, mesmo no modo Hard;
- Experiência significativamente mais curta do que a dos predecessores...;
- ...Implicando uma quantidade de Somnia significativamente menor...
- ...E uma história mais simples e fácil de prever.
Desenvolvedora: Spike Chunsoft
Ano: 2025
Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, experienciada na Nintendo Switch e Nintendo Switch 2, através de um código gentilmente cedido pela editora.

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