[Análise] Bohemian Killing [NSW]


O gênero literário do crime policial muito frequentemente tem no seu centro figuras estóicas e incorruptíveis, que utilizam o seu engenho para colocar um ponto final justo nos mistérios que desvendam. Mas Bohemian Killing vira esta dinâmica completamente do avesso. Em vez de encarnarmos um pilar de justiça, assumimos o papel de um assassino de sangue-frio, justamente preso por um crime que realmente cometeu.

É com este trunfo que o jogo orgulhosamente abre: a nossa primeira ação no título é assassinar a nossa presa, Marie Capet - uma empregada de um lorde francês. Após este curto prelúdio, vemo-nos presos e colocados diante de um tribunal, com várias provas empilhadas contra nós. A única coisa que separa o nosso pescoço do aço frio da guilhotina é um testemunho convincente capaz de convencer o juiz. 


Para construir esta narrativa, tomamos o controlo do homicida Alfred Ethon, um inventor desprezado pelos parisienses por causa da sua riqueza e ascendência cigana. Na sua pele, deambulamos por uma pequena rua de Paris no século XIX - o cenário do crime. Assim, ao encenarmos, em primeira pessoa, a nossa visão dos acontecimentos, vamos construindo a nossa história, que Ethon narra para o tribunal.

Se queremos criar uma história com pés e cabeça, temos de ter os devidos cuidados para acomodarmos a evidência que a acusação reuniu contra nós. Isto envolve não só uma cautelosa organização dos eventos, mas também atenção ao fator tempo. É necessário organizar de modo coerente as nossas ações, mas temos de assegurar que momentos-chave (como a interação com uma testemunha) ocorrem de modo plausível. A todo o momento, nós podemos consultar o nosso relógio de bolso para coordenarmos as nossas ações em conformidade. Para avançarmos no tempo, temos de realizar ações como tomar banho, cortar a barba e conversar, que despendem alguns minutos.

Assente nesta base, esta experiência apresentou-se com enorme potencial: até onde iremos para reduzir a nossa pena? Tentamos fazer-nos passar por dementes? Ou passamos a culpa para alguém completamente inocente? Segundo o desenvolvedor, que exerce advocacia na vida real, "a nossa imaginação é o limite".

Infelizmente, talvez a nossa imaginação tenha sido subestimada. Aquilo que fazemos no jogo é fundamentalmente a andar entre locais e interagir com os elementos dispersos pela área, muitas vezes "descobrindo" evidência a nosso favor no processo. Não há qualquer processo de dedução ou raciocínio envolvido neste loop de jogabilidade. Além disso, como não temos qualquer ideia daquilo que cada ação provocará até a concretizarmos, estas interações são feitas sem qualquer planeamento estratégico. Em consequência, na minha primeira run de Bohemian Killing simplesmente tentei realizar uma quantidade substancial de interações e descortinar a maior quantidade de evidência possível. O enquadramento temporal das ações, que prometia ser um componente chave da jogabilidade, não apresentou grandes dificuldades. Os grandes acontecimentos estão referenciados no nosso portefólio de evidência, e estão tão espaçados no tempo que raramente o jogador se sente constrangido neste campo. 


Com esta estratégia, consegui um veredicto de inocência ao fim de apenas 2 horas. Mas não senti qualquer deleite; uma vitória sem esforço não tem qualquer sabor. Mas talvez as coisas não tivessem de acabar assim. Afinal de contas, Bohemian Killing tem 9 finais, e encoraja os jogadores a repetir a experiência, para descobrirem os outros possíveis desfechos. Com isso em mente, mergulhei na minha 2ª run do jogo.

E foi assim que descobri mais buracos neste título. Neste meu 2º testemunho, dirigi-me diretamente para a cama, condenando Ethon à guilhotina. Talvez por sentido de justiça, talvez por sadismo, talvez por já não estar minimamente investido em Bohemian Killing. Mas foi aqui que o jogo me conseguiu surpreender: uma vez de volta ao tribunal, a acusação, na sua declaração final, atacou pontos do “meu testemunho” que eu nem sequer tinha levantado. Este nível de inconsistência já se revelara na run inicial, mas apenas em acontecimentos menores. Mesmo assim, já tinha sido suficiente para quebrar qualquer ilusão de realismo e provocar uma desconexão com este pequeno mundo. Por exemplo, nenhum NPC reagiu às minhas roupas manchadas de sangue, e o juiz não estranhou que Ethon tivesse levado Marie Capet, uma mera ex-colega de escola, ao local onde o protagonista desenvolvia secretamente uma máquina de tortura e que, em seguida, ligasse esta máquina.

As minhas runs seguintes foram marcadas pelos mesmos problemas e por um crescente sentimento de fadiga. Apesar de podermos passar à frente os diálogos, a jogabilidade resumiu-se a uma hora de ações repetidas, com pequenas variações. O que também não ajuda nada é os longos loadings, que tornam as mudanças de localização num suplício.

Este não é o único problema técnico de Bohemian Killing. Pequenos bugs acompanharam as minhas sessões de jogo, e em vários momentos ao mover a câmara ocorreram episódios de stuttering. Os controlos, por seu lado, foram projetados para o uso de um rato, pelo que em dados momentos senti frustração ao realizar movimentos de precisão tais como apertar o botão certo dentro de um elevador.


É uma pena que Bohemian Killing seja vítima da sua jogabilidade e inconsistência, porque a sua ideia base era interessante e as suas personagens intrigantes. Apesar de pequena e limitada, a sua recriação de Paris honra o seu enquadramento histórico, principalmente através do posicionamento social e racial e história das suas personagens. Infelizmente, nunca chegamos a descobrir a verdadeira sequência de eventos que conduziu ao assassinato: na nossa narrativa, não estamos a escrever o passado, mas sim a elaborar um alibi. Nem na evidência que reunimos podemos confiar, porque não temos forma de discernir se esta é forjada ou não.

Conclusão
No papel, Bohemian Killing era um conceito promissor. Na prática, o que nos chega às mãos é um jogo com uma quantidade imensa de falhas, que nunca coloca à prova o intelecto do jogador e que cujas inúmeras incoerências prejudicam o envolvimento do jogador na experiência. Depois de terminar este título, apenas ficou a pena por Bohemian Killing não ter sido concretizado por alguém capaz de criar um produto à altura da sua ideia base.

O melhor
- Enquadramento sócio-cultural;
- Conceito promissor.

O pior
- Jogabilidade desapontante;
- Duração curta;
- Problemas técnicos.

Nota do GameForces: 4.0

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Ultimate Games.

Título: Bohemian Killing
Desenvolvedora: The Moonwalls
Publicadora: Ultimate Games
Ano: 2020

Autor da Análise: Tiago Sá

[Análise] Bohemian Killing [NSW] [Análise] Bohemian Killing [NSW] Reviewed by Tiago Sá on maio 15, 2020 Rating: 5

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