Análise | Neva - As Quatro Estações de Nomada Studio

 

A Biologia e a Geologia podem consistir no estudo da Terra, das rochas, das estações, da Vida, mas eu encaro estas disciplinas como o estudo de Ciclos. Desde o ciclo de Krebs que alimenta as nossas mais insignificantemente significantes ações, à constante permuta de água entre animais, terra, mar e céus, a existência no Universo conforma-se perentoriamente a cadeias de eventos inquebráveis e eternamente entrelaçadas. A nossa Vida e Morte são unicamente outra engrenagem neste relógio de extensão e complexidade infinitas. Porém, se é o mesmo Sol se ergue e põe dia após dia, não é o mesmo id que continuamente se extingue e renasce nos seres vivos que povoam a Terra. A presença Humana no planeta não é perpetuada por equivalentes mitóticos, mas por descendentes imprevisíveis e distintos da figura que as concebeu, implicando uma passagem de testemunho geracional que despertará anseios, desejos e expectativas singulares em cada indivíduo.

Este ciclo da vida terá indubitavelmente inquietado e inspirado os criadores de Gris, que canalizaram as suas inquietações para Neva, o jogo, e Neva, a personagem. Ambos indissociáveis, porque falar de Neva é equivalente a falar da história da lobita, construída meticulosamente ao longo das quatros estações de um ano. Lançamo-nos a este mundo bucólico no verão, quando a mãe da cria é ceifada pela força malévola que ameaça este mundo. Na pele da humana Alba, cabe-nos guiar e proteger a pequena Neva por um mundo que desconhece, onde cada novidade encerra uma encantadora distração, cada pequeno salto inspira insegurança e onde, perante qualquer obstáculo ou oponente no caminho, resta à cria ganir temerosamente e aguardar o nosso auxílio. Com o cair das folhas, a natural curiosidade é substituída por uma irreverente impaciência: a indefesa lobita que nos detinha em cada passo deu corpo a uma ágil e nobre criatura, que se antecipa velozmente aos nossos passos e começa a reter os seus inimigos nos seus desenvolvidos caninos. Assim arranca uma longa jornada de crescimento, autodescoberta e amadurecimento, até avizinhar-se uma nova primavera, que exige o forçoso encerramento de um ciclo e o início de um novo – tornando imperativo depreender como melhor podemos empregar o nosso pequeno momento na Terra para entregar um futuro mais auspicioso à nossa prole, perante um mundo inexoravelmente e impiedosamente iterativo.

Imenso é dito sobre crescimento, entreajuda, papel parental, e legado, sem que uma frase precise de ser proferida. É principalmente das ações de Neva (e das breves cinemáticas) que extraímos a nossa interpretação e significado da campanha; mas o que, noutra obra, seria o grosso da comunicação com o jogador, é aqui a ponta do icebergue do léxico. Neva estabelece sublimemente a atmosfera dos seus capítulos pelas suas composições envolventes e os seus visuais esplendorosos, construídos em amenos tons pastel e atmosféricos gradientes de cor. As quatro estações do ano desenham-se em paletas de cores diferenciadas, reforçando eficazmente a passagem do tempo e a beleza deste mundo. Para além de todas as suas paisagens nos deslumbrarem e motivarem a massacrar o botão de screenshot, também vincam o contraste entre a serena Natureza e a monótona monocromia dos ambientes e seres tomados pela força malévola; o contraste entre a vibrante e fulgurosa vida, e a inquietante estase ditada pelas forças negras, onda os seres consumidos somente despertam por instantes como marionetas dos agentes sombrios para apagar as tenazes réstias de energia que permanecem em movimento.

Nas nossas formas de interação com estes inimigos e com o mundo, encontramos uma extensão da rica comunicação de Neva. A jogabilidade combina platforming, puzzles e combate, nunca sendo marcadamente exigente em qualquer das vertentes, mas compreendendo variedade e envolvência apropriadas para nos investir nas suas 4 horas de aventura. Apropriadas, mas não perfeitas. Nos  colectáveis secretos, encontrei a mais orgânica e real interpelação à minha atenção; de resto, apesar de o combate (dependente de ataques de espada e dodges) ser fluido e satisfatório e aprofundar a diversidade mecânica da experiência, as batalhas contra bosses serem grandiosamente cinemáticas e empolgantes, e os desafios de travessia experimentarem algumas ideias interessantes (especialmente na segunda metade da campanha), a brevidade e a limitada complexidade das secções dedicadas a cada conceito individual suscitam a perceção de que a jogabilidade foi uma criação secundária elaborada na dependência da história – algo especialmente notório nos inúmeros trechos de estouvada caminhada em linha reta, em que somos encorajados a admirar e estudar os panos de fundo por demasiado tempo. 

Afinal, tanto no combate, como na navegação, sentimos na pele o marcado crescimento de Neva. A nossa velocidade de caminhada, perfeitamente satisfatória nos capítulos iniciais, afigura-se pesada e vagarosa depois de experimentarmos galopar na garupa da veloz e possante Neva; as opções de ataque com que subjugamos os nossos oponentes adquirem maior impacto e nuance à medida que Neva se torna uma caçadora e parceira mais dotada, originando sentimentos de desamparo nas ocasiões em que não podemos contar com o seu valoroso apoio. Até o simples botão que, durante toda a história, apenas nos permite chamar “Neva”, comunica-nos a emoção que domina Alba, desde ânimo a saudade, desde carinho a urgência (numa certa ocasião, é até utilizado para nos proporcionar uma dócil surpresa). Neva é um fruto praticamente imaculado de uma visão cristalina, plenamente ciente da história que pretende contar, em que todas as componentes são finamente articuladas para amplificar o impacto e força da sua tocante mensagem.


Conclusão

Neva é um dos melhores argumentos em prol da defesa de videojogos como arte, comovendo os jogadores com o seu núcleo emocional pungente enriquecido por todos os elementos visuais, sonoros e mecânicos construídos em seu serviço. É belo, inspirador e inspirado, e um penetrante convite à reflexão sobre vida e morte, família e legado.

 

O melhor

- História emocional;

- Visuais e banda sonora incríveis;

- Experiência notavelmente coesa em todas as suas vertentes;

- Ótimos colectáveis opcionais;

- Boa combinação de platforming e combate...

 

O pior

- ...com um teto baixo de complexidade e exigência;

- Excessiva preponderância de travessias por paisagens pacíficas no tempo de jogo.

 

Nota do GameForces: 9.0/10


Título: Neva;
Desenvolvedora: Nomada Studio;
Editora: Devolver Digital;
Ano: 2024

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela editora.

Autor da Análise: Tiago Sá
Análise | Neva - As Quatro Estações de Nomada Studio Análise | Neva - As Quatro Estações de Nomada Studio Reviewed by Tiago Sá on dezembro 06, 2024 Rating: 5

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