Reflexão | Aprofundando a Imersão - Dia de GameForces 2023


Há algumas palavrinhas mágicas que os redatores de análises gostam de usar, quiçá em demasia. Adjetivos como “único” e “imersivo” aparecem recorrentemente nas análises dos jogos dos mais variados gêneros, muitas vezes sem serem devidamente elaborados ou justificados. Se o carácter “único” dos títulos pode ser imediatamente evidente, sendo decorrente da presença de elementos incomuns ou inusitados na experiência, o que significa dizer que um jogo é imersivo?

Desde logo, na minha interpretação e (ab)uso da palavra, considero que estou imerso num jogo quando me envolvo o suficiente na experiência para me abstrair do mundo real, Nestes títulos, dedico todo o meu pensamento e raciocínio à concretização de objetivos virtuais ou exploração, perdendo a noção da passagem do tempo ou das obrigações da vida. Pronto, pergunta respondida num artigo curto; vejo-vos depois de todos acabarmos Tears of the Kingdom? Não, falta esclarecer: o que está na origem desse atributo?

Tal como a própria diversão, a imersão é uma sensação profundamente subjetiva e pessoal, dependente das sensibilidades e preferências de cada jogador. Por isso, para responder a esta questão, vou conciliar a minha perspetiva com algumas apreciações que os nossos colaboradores teceram em análises passadas.

Para começar, na análise de Xenoblade Chronicles: Definitive Edition de Vítor Carvalho, ele afirma que “a realização de missões secundárias em vez de grinding contribui para a imersão no belíssimo mundo de Xenoblade Chronicles”. Um tópico interessante é levantado: a nossa relação com o mundo. Na trilogia Xenoblade Chronicles, as sidequests permitem-nos perceber como é que as civilizações do mundo operam e estão estruturadas e aprofundar a relação com os seus habitantes, tornando os três universos da série pulsantes e profundos.

Esta relação de proximidade com os cenários de jogo só pode ser concretizada se estes apresentarem plausibilidade. Neste aspeto, Bruno Neves elogiou Wonder Boy: Asha in Monster World com base na coerência temática dos locais, roupas, armas e personagens, e eu opto por destacar a série Luigi’s Mansion, que incorpora dois títulos que, pelo seu contraste, tornam este ponto evidente.

Embora Luigi’s Mansion 3 seja uma campanha de elevada qualidade, esta experiência tem deslizado gradualmente da minha memória e vai perdendo o meu apreço, pura e simplesmente pela sua fraca atmosfera e cenários incoerentes. A ideia de que estamos a explorar um hotel cai por terra quando chegamos a um piso que compreende um vasto oceano, e outro que consiste num deserto. Adicionalmente, os seus fantasmas são criaturas miseráveis que não têm qualquer propósito na sua não-vida para além de importunar o Luigi.

Em contrapartida, eu sou capaz de desenhar uma planta da mansão do primeiro Luigi’s Mansion de memória. Ironicamente, esta mansão foi criada de um dia para o outro pelos Boos, mas consegue ser mais realista do que qualquer outra localização da série. A maioria das suas divisões está perfeitamente inserida no que encontraríamos numa mansão, e uma porção significativa dos seus habitantes é completamente indiferente ao Luigi até ele implacável e impiedosamente iniciar os confrontos. Esta adesão à plausibilidade resulta num jogo curto, mas extremamente memorável e com elevado replay value.

Tal significará que a imersão é uma consequência direta do realismo? É uma noção comum, tanto que Filipe Mesquita afirma que a direção mais arcade de DOOM Eternal pode prejudicar o realismo. Discordo completamente: o que importa é a plausibilidade intrauniverso. Atrevo-me a dizer que, quanto mais distintas forem as regras do mundo de jogo das do mundo real, mais facilmente aceito a realidade apresentada. Tenho bastante facilidade em ficar imerso num mundo de Mario 3D que, precisamente por ser tão fantasioso e distanciado da nossa realidade, consegue traçar as suas próprias regras. Em contraposição, um jogo que almeje o realismo inevitavelmente será incoerente nalgum aspeto. Red Dead Redemption 2 recebeu incontáveis elogios com base no seu realismo e atenção minuciosa ao detalhe… e é por esta atenção não ser universal e eu notar algumas quebras no realismo que não fico embebido no mundo. Como é que o jogo pode preocupar-se tanto com a preservação da fertilidade dos equinos, ao mesmo tempo que permite que as armas se teletransportem entre Arthur Morgan e o seu cavalo?

Falando em quebras no realismo, no texto centrado em Control de Filipe Castro Mesquita ele disserta que “poucas coisas quebram mais a imersão do que a imagem e o som a não baterem certo”. Eu extrapolo um pouco mais: qualquer acontecimento que prejudique a integridade, causalidade e apresentação do universo é um obstáculo à imersão. Seja a falta de animações faciais em Aeterno Blade 2, as falhas nas físicas em Superliminal, ou os t-poses (e milhentos outros problemas) em Cyberpunk 2077, basta um empurrãozinho para todo o nosso envolvimento ser atirado pela janela.

Agora, basta de olhar para exemplos negativos! Mais do que saber o que evitar, é necessário aprender com os mestres do ofício e, por isso, vou debruçar-me sobre os três títulos em que mais fiquei imerso na minha vida: The Legend of Zelda: Breath of the Wild, Hollow Knight e Pikmin. 

The Legend of Zelda: Breath of the Wild não tem uma história de fundo muito desenvolvida, mas o que tem é um dos melhores sistemas de físicas, mecânicas e inteligência artificial dos videojogos. Tudo em Breath of the Wild opera em concordância com as nossas expectativas e lógica, explorando os limites das habilidades de Link e dos objetos que encontramos. Não é por acaso que, até hoje, continuam a ser feitas novas descobertas no jogo: esta jornada de Link é um convite irresistível à experimentação. Se juntarmos a este trabalho um mapa vasto e recheado de segredos para encontrar, ficamos perante a melhor e mais imersiva experiência de mundo aberto até à data da publicação (espero mesmo que só até à data da publicação!). E o curioso é que The Legend of Zelda: Breath of the Wild não é isento de problemas ou inconveniências: escalar à chuva é moroso e desgastante, a degradação das armas é demasiado rápida, a quantidade de inimigos únicos deixa a desejar, etc.. Todavia, nenhum destes defeitos entra em conflito com o funcionamento do universo, e todos estes pontos negativos inserem-se de um modo compreensível nesta iteração do reino de Hyrule.

Por seu lado, Hollow Knight brilha também no seu imaculado polimento, mas tem interações substancialmente mais limitadas: todas as ações que temos ao nosso dispor apenas servem para a travessia das áreas ou para o combate. Independentemente disso, este indie de excelência, e o único título ao qual este estimado redator atribuiu a nota máxima, conseguiu a proeza de nos introduzir a uma localização igualmente viva – noutro acesso de ironia, visto que o reino de Hallownest se encontra numa eterna estase.

Novamente, encontramos uma região recheada de segredos, sendo a maior parte das tarefas e locais que podemos visitar em Hollow Knight opcionais para terminar o título. Aliás, existem imensos bosses singulares que são totalmente opcionais e, por isso, só existem para enriquecer a variedade de Hallownest. Ao longo da nossa aventura, cruzamo-nos recorrentemente e espontaneamente com personagens como Quirrel, que se encontram nas suas próprias peripécias pessoais independentes das nossas ações. Até nas personagens com as patas coladas ao chão encontramos evolução significativa ao longo do tempo, como Myla, e uma das áreas iniciais do título sofre alterações drásticas quando a revisitamos após um certo ponto da progressão. Hallownest, em virtude desta mutabilidade e da riqueza de bosses e segredos, torna-se num reino credível, mesmo sendo habitado por insetos que combatem com agulhas e magia.

Por fim, Pikmin (1) é o título inaugural e mais rudimentar na série e, mesmo assim, é o ápice em imersão da trilogia. Aliás, eu acredito que é precisamente por ser o título mais rudimentar que é o mais imersivo. Nos três jogos Pikmin, acompanhamos um astronauta que se vê preso num planeta desconhecido, sem qualquer sinal de vida inteligente, preenchido por animais que indiferentemente nos adicionam à sua dieta. Esta é uma série em que os nossos inimigos não são vilões megalomaníacos, mas sim banais criaturas que obedecem à simples e indiferente hostilidade da natureza. É esta indiferença que Pikmin captura na perfeição, não deixando que o “jogo” invada artificialmente a “experiência”, o que é sobejamente evidente nos bosses. Nenhum surge com uma cinemática, nenhum tem limitações do dano que podemos provocar por fase, poucos têm uma música de batalha específica e quase todos surgem integrados no mundo em vez de restritos a uma arena de boss, ao contrário do que verificamos nas entradas subsequentes da série.

Um ponto de ligação entre estas três experiências é que quase todas as ações realizadas pelos protagonistas destes jogos são comandadas diretamente pela mão do jogador, não sendo comum assistirmos a transições de jogabilidade para cinemáticas nas quais a nossa personagem atua de forma independente – o que gera uma relação mais íntima entre nós e o nosso avatar no mundo virtual.

Por todos estes fatores, só posso concluir que a imersão, apesar de ser uma característica mencionada ao desbarato, é uma sensação que apenas as melhores experiências conseguem invocar, na minha vivência pessoal. Exige a criação de um universo apelativo, plausível e palpável, apresentado do modo mais natural possível; implica que nenhuma das suas vertentes, seja mecânicas, físicas, som ou apresentação, destoe das regras que ditam o mundo; mas mais do que isso, pede que os desenvolvedores consigam dar ao seu projeto um cunho especial, uma marca de vida que desperte e retenha o nosso interesse no título durante toda a nossa passagem por ele. Assim, declaro que não me verão tão cedo a disparar este termo... Ah, é verdade, Tears of the Kingdom lança amanhã... Finjam que não disse nada!

O presente artigo foi redigido por Tiago Sá como a publicação do Dia de GameForces inaugural, a ser celebrado anualmente a 11 de maio. Nesta data, olhamos para aspetos mais conceptuais dos videojogos e/ou do processo de redação de análises, apoiando-nos no nosso trabalho passado e procurando aprimorar o nosso futuro!
Reflexão | Aprofundando a Imersão - Dia de GameForces 2023 Reflexão | Aprofundando a Imersão - Dia de GameForces 2023 Reviewed by Tiago Sá on maio 11, 2023 Rating: 5

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