Análise | Card Shark – Alguns Bons Truques na Manga


Não sei quanto a vocês, caríssimos leitores, mas a minha paixão por jogos vai um pouquinho para lá dos que requerem linhas de código infindáveis. Sim, sou fã de vários jogos de tabuleiro complexos e com potencial para arruinar amizades, bem como de jogos de cartas, desde os mais inocentes até àqueles onde apostar dinheiro é comum – e que também têm potencial para arruinar amizades. Eis que chegamos a Card Shark, um videojogo onde teremos de utilizar truques de cartas para fazer batota e levar adversários snobes à falência – e como alguém que não tem a mínima destreza para fazer truques de cartas e que nunca faria batota na vida real, claro que este jogo teria de vir parar ao meu radar. Mas terá Card Shark truques verdadeiramente impressionantes na manga, ou deixar-me-á com vontade de ir nadar com tubarões?


Card Shark leva-nos numa viagem no tempo até à França do século XVIII e coloca-nos na pele de Eugene, um humilde jovem mudo que trabalha numa estalagem. Um dia, este jovem cruza-se com um trapaceiro que se faz passar por conde e deixa-se aliciar pelas promessas de riqueza fácil, com uma única condição: ajudá-lo a fazer batota num jogo de cartas. A simplicidade do plano do conde leva o jovem garçon a alinhar no plano, resultando em consequências desastrosas para a sempre rabugenta dona da estalagem. Como tal, o jovem mudo vê-se obrigado a fugir com o falso conde e a mergulhar num submundo de mentiras, batotas e traição, tendo de aprender a desempenhar inúmeros truques de cartas para sobreviver, ajudar aqueles que lhe deram refúgio e até desvendar uma misteriosa conspiração que ecoará pela sociedade francesa acima até ao próprio rei.

A história de Card Shark levará Eugene a viajar por toda a França, cabendo-nos a nós ir escolhendo qual o seu próximo destino, cada qual servindo de nível a cumprir. Assim que o escolhemos, o nosso parceiro de viagem, normalmente o infame “conde,” ensina-nos um novo truque enquanto nos apresenta o local, incluindo os potenciais alvos que o frequentam, e vai revelando novos detalhes que fazem a narrativa avançar. O jogo apresenta, portanto, uma fórmula que se vai repetindo quase estilo copy/paste ao longo das suas 8 a 10 horas de duração: escolher um local, aprender um truque novo e desempenhar bem o truque para acumular riqueza. Felizmente esta fórmula nunca se torna aborrecida, não só pelo facto de os truques serem interessantes e divertidos de aprender (já lá vamos mais adiante), mas pelo facto de haver imensos momentos de diálogo interessantíssimos entre personagens riquíssimas que contribuem para que estejamos perante uma história surpreendentemente cativante e envolvente, cheia de voltas e reviravoltas muitíssimo bem conseguidas.


Quanto à jogabilidade diretamente relacionada com os truques de cartas, estes são apresentados como minijogos de resolução de puzzles. Como referi, há dois momentos de jogo associados aos truques: um de aprendizagem e outro de execução. Quando estamos a caminho de uma localidade, o “conde” ou outra personagem relevante vai-nos ensinando o truque a ser aplicado no jogo de cartas do nível que escolhemos, passo a passo. Isto significa que podemos errar sem consequência e ir praticando cada passo ou a totalidade da manobra a ser aplicada no nível quantas vezes quisermos. E ainda bem que assim é, porque no nível em si teremos de executar cada truque exímia e rapidamente, mantendo sempre um olho na barra de suspeição que vai aumentando à medida que vamos fazendo as nossas batotas. Caso falhemos o truque perdemos automaticamente a jogada e o dinheiro apostado, ou caso sejamos demasiado lentos ou falhemos um truque podemos ser automaticamente desmascarados como batoteiros e presos, ou pior, mortos na hora.

Antes de aprofundar mais a análise destas instâncias do jogo, queria apenas deixar uma palavra de louvor ao modo como Card Shark incorpora os momentos de erro ou falhanço no contexto da narrativa e do mundo do jogo. Caso morramos ou sejamos presos, não somos meramente remetidos para o início do nível como se nada fosse. Quando morremos, somos postos perante uma personificação da morte e teremos de jogar uma mão contra a mesma para regressar ao momento de prática sem custos adicionais (ou seja, sem perdermos o dinheiro com que entrámos para o nível). Caso sejamos presos, teremos o chefe do grupo de marginalizados que nos auxiliou no início do jogo a pagar-nos a fiança, ficando ainda mais na sua dívida. Pode parecer pouco, mas a inclusão destes detalhes contribuiu imenso para o enriquecimento do jogo e do seu mundo, e fortaleceram o meu interesse em passar mais tempo no mesmo. Isto para não falar de ter aumentado a minha aversão ao falhanço, por haver, de facto, consequências mais visíveis para o mesmo.


Regressando aos truques em si, Card Shark ensina-nos a fazer uma boa variedade e quantidade destes. Desde manhas no momento de baralhar as cartas, a pequenos truques nos momentos de jogo para assinalar cartas de elevado ou reduzido valor, até mesmo a utilização de baralhos duplicados ou com cartas nas quais pintamos marcas distintivas para ajudar a distribuir como mais nos convém, há aqui um pouco de tudo o que se pode imaginar. E se nos momentos de treino somos postos perante cenários relativamente simples e que pouco variam, na hora da verdade as coisas complexificam-se sempre um pouco mais. A distribuição das cartas é verdadeiramente aleatória, obrigando-nos a prestar muita atenção ao que estamos a fazer de modo a levar o truque até ao fim com sucesso. Isto faz com que a jogabilidade seja imprevisível, e que cada mão seja um verdadeiro puzzle para resolver. É, portanto, uma jogabilidade prazerosa e divertida do início ao fim… para quase toda a gente.

De facto, chego aqui a um ponto onde me sinto na obrigação de fazer um aviso aos potenciais interessados em Card Shark: este não é um jogo fácil para quem tem alguma dificuldade de concentração e/ou de memória. Acontece que este vosso redator tem problemas tanto com uma como com outra – daí estar tão familiarizado com o que acontece quando se falha, como ilustrado num dos parágrafos anteriores. Se forem como eu, o jogo não vos é impossível de todo, senão também não estaria aqui com o mesmo acabado e preparado para falar sobre ele. Mas vão sentir mais dificuldade do que me parece ter sido a intenção dos produtores em alguns dos truques mais longos ou que requerem uma preparação mais cuidadosa.

Argumento que os truques e o modo como estes são jogados são interessantes e variados o suficiente para que nunca se sintam propriamente frustrados com este título, mas poderão necessitar de mais passagens pelas instâncias de prática antes de avançarem para alguns dos níveis em si. Pessoalmente senti-me sempre entretido, mesmo quando cometia um erro parvo resultante de uma distração ou de me ter esquecido da copa relevante para o caso, nunca deixando de achar o jogo divertido. Mas perceberei perfeitamente se alguém com algumas das dificuldades que elenquei possa ter também mais dificuldade em retirar o mesmo prazer que eu desta experiência.


Mas se isto não é um problema propriamente do jogo ou do modo como este foi desenhado, há algo que me parece mais problemático e que diz respeito à progressão. No total, temos 28 truques de cartas para aprender e aplicar, com os primeiros truques a serem mais simples e os últimos mais complexos, por vezes misturando algumas das artimanhas mais simples que se aprende no início do jogo com outras mais avançadas. Até aqui tudo bem, e consigo até entender que alguns dos truques mais complexos sejam meramente vários dos simples aplicados de uma só vez, mas a verdade é que a dificuldade dos truques que vamos aprendendo nem sempre é consistente.

Em mais do que uma ocasião fiquei com a sensação de estar a aprender um truque bastante complexo num nível, e que me obrigou a várias sessões de prática ou até a um falhanço, para num nível desbloqueado de seguida aprender uma ligeira variação de um truque incrivelmente mais simples e que consegui acabar o seu nível sem qualquer problema. Fico claramente com a sensação que faltou afinar aqui a progressão da dificuldade ao longo dos níveis, o que poderá ser problemático para qualquer jogador.

Antes de avançar para aspetos mais técnicos, há outros aspetos que convém referir sobre Card Shark. Este não tem propriamente atividades secundárias, mas tem algumas opções fora dos níveis principais. A dada altura desbloqueamos uma sala de jogos que serve meramente para ir acumulando dinheiro sem grandes consequências. Isto pode ser necessário para aceder a um novo nível cujo valor de aposta base é mais elevado, ou para acumular fundos para doar ao acampamento de excluídos que nos acolhe e ajuda no jogo. Sempre que doamos dinheiro é-nos dito que é para “ajudar um orfanato,” ou algo do género, e não é claro como estes donativos afetam ou não o desfecho do jogo, mas pode ser uma distração divertida caso estejamos presos num nível particularmente exigente. Por fim, não há propriamente conteúdo pós-jogo, mas temos a possibilidade de revisitar algumas das decisões finais da narrativa e ver como estas afetam como a história acaba, havendo pelo menos uma mão cheia de desfechos para ver.


Chegados às vertentes técnicas de Card Shark, é com prazer que falo da direção artística do jogo. Visualmente, Card Shark é um autêntico deleite, é sempre um prazer contemplar o estilo de aquarela dos cenários e das personagens, bem como a utilização extremamente apelativa da cor. Esta opção estilística leva a que as animações não sejam muito complexas, mas estas complementam muitíssimo bem a visão artística do jogo. De um ponto de vista sonoro, também não há nada a apontar. A banda sonora está muitíssimo bem conseguida, e ainda hoje ando a cantarolar uma trilha ou duas do jogo. Os efeitos sonoros são sempre realistas e simples, complementando perfeitamente a ação do jogo.

Já de um ponto de vista do desempenho, infelizmente não dá para dar ao jogo quaisquer louvores. O jogo corre suficientemente bem na generalidade do tempo, mas está completamente enterrado em problemas técnicos. Para começar, sempre que saímos de um ecrã de carregamento, há um ligeiro solavanco na imagem, que fica congelada durante uns quantos frames. Não me lembro de um único nível onde tal não tivesse acontecido. E depois chegamos aos bugs, que nunca são pequenos. Perdi a conta à quantidade de vezes em que o jogo ficou parado a meio de um truque, não me dando outra hipótese senão sair do jogo e voltar a entrar, tendo de recomeçar o nível. Isto quando o bug não era tão grave ao ponto de mandar o jogo abaixo por si mesmo, atirando-me de volta para o menu principal da Switch.

Felizmente nenhum destes me fez perder progresso significativo, para além de ter de começar os níveis de novo, não corrompeu os meus dados gravados, nem me deixou encalhado e incapaz de terminar o jogo. Ainda assim, é uma quantidade de problemas extremamente notório e que persistem mais de 20 dias depois do lançamento do jogo.


Conclusões
Card Shark é um jogo sem igual, misturando brilhantemente uma narrativa apelativa e uma jogabilidade à base de minijogos e pequenos puzzles cativantes e divertidos de aprender. É também um título sempre prazeroso de contemplar e de ouvir, embora seja de lamentar estar tão atormentado por problemas técnicos e bugs que interrompem a sessão de jogo. Não fossem estes problemas serem tão prementes, e poderíamos estar perante um jogo bastante recomendável a quase toda a gente, mas ainda assim é um título com muitos truques na manga que agradará a muitos jogadores.

O Melhor:
  • Puzzles interessantes e desafiantes que requerem concentração e atenção ao detalhe
  • Narrativa bastante cativante e cheia de reviravoltas
  • Direção artística que é um deleite para os olhos
O Pior:
  • Progressão da dificuldade é bastante inconsistente
  • Imensos problemas técnicos que prejudicam a fluidez do jogo
 
Pontuação do GameForces – 8/10

Título: Card Shark
Desenvolvedora: Nerial
Publicadora: Devolver Digital
Ano: 2022

Nota: Esta análise foi realizada com base na versão digital do jogo para a Nintendo Switch, através de um código gentilmente cedido pela Devolver Digital.

Autor da Análise: Filipe Castro Mesquita
Análise | Card Shark – Alguns Bons Truques na Manga Análise | Card Shark – Alguns  Bons Truques na Manga Reviewed by Filipe Castro Mesquita on junho 23, 2022 Rating: 5

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